A ORIGEM DO SENEPOL, FEITO PARA O BRASIL
A necessidade de alimentar uma população, ainda que pequena, de uma minúscula ilha do caribe americano foi o que deu a chance de descobrimento de uma raça que nasceria longe do Brasil, mas que para a pecuária brasileira parecia feito. Vem de meados do século XIX a origem da raça Senepol. Saint Croix é uma ilha no Caribe, de apenas 260 km2 e 45 km de extensão, que pertencia à Dinamarca. Desde a sua criação, o rebanho conviveu pelas ruas e estradas da ilha, foi adaptando sua condição de hospitalidade no convívio com os habitantes locais muito maior do que as tribos Kalinago que receberam com hostilidade as caravanas de Cristóvão Colombo quando ele ali desembarcou pela primeira vez, em 1492. A ilha era uma disputa de Espanha, Grã- Bretanha e Holanda, mas acabou virando posse da França, pelo menos de 1650 até 1733. Em junho daquele ano, os franceses venderam aquele conjunto de ilhas – formado também por Saint Thomas e por Saint John – para uma sociedade pertencente a uma companhia de colonos de uma união Dinamarca-Noruega. Só em 1814 os dinamarqueses se tornaram únicos donos das ilhas. Em 1916, após um referendo nacional oficial que teve aprovação de 62,4% da população do país escandinavo, foi autorizada a venda da ilha aos Estados Unidos, na operação registrada como Tratado Dinamarquês das Índias Ocidentais, por um valor de US$ 25 milhões pagos em ouro explorado na própria ilha, que além dessa extração já vivia também de cana-de-açúcar e do pouco gado que alimentava a população.
Os americanos passaram, em 1917, a ter o controle da ilha, que foi denominada Estados Unidos das Ilhas Virgens. Só em 1927 seus habitantes foram reconhecidos, legalmente, cidadãos americanos.
Mas muitas famílias de diferentes origens já haviam se instalado naquelas terras quentes, de clima tropical, vindas da América do Norte e com veias nórdicas dos povos que dominaram o território até aquele tempo. A evolução da ilha foi estabelecendo as divisões municipais e espalhando as famílias por Saint Croix. E, nessa época, todos deviam a subsistência a uma proteína vermelha que assegurava valores nutricionais e garantia saúde à população. Uma carne produzida por um gado formado ali mesmo, graças à visão de uma família.
OS NELTHROPP
A família Nelthropp vivia numa pequena cadeia de montanhas no centro da Ilha de Saint Croix e já abastecia parte da população com o minguado gado sem definição de raça criado com várias experiências realizadas ali por alguns criadores, que importavam genética muito diversificada de países distantes, até 1889, e misturavam com o que se chamou na ilha de gado crioulo. Até que o patriarca, Henry Nelthropp, fez um grande investimento em uma vacada trazida 30 anos antes num navio negreiro por um quase vizinho, George Elliot. Eram animais da raça N’Dama originária do Oeste do continente africano, preferencialmente de Guiné- Bissau, depois desenvolvida no Sul do Senegal, Mali, Serra Leoa e Costa do Marfim.
Com o tempo, espalhou-se para o resto do continente, especialmente Congo e Zaire, por sua forte resistência a doenças como a do sono, causada pela mosca tsé-tsé. Animal de porte médio, em que fêmeas podiam atingir um metro até sua altura máxima da paleta e o macho, 1m20, com grande capacidade de conversão do pouco que comia em carne de bom valor nutricional, com pouca gordura. Apesar de até hoje fornecer pouco leite, média de 3 kg/dia, segundo departamento de estudo de raças da Universidade Estadual de Oklahoma, EUA, a fêmea N’Dama desmama suas crias com bom escore, podendo chegar rapidamente aos 300kg. O maior rebanho ainda está no Senegal, com mais de 1 milhão de cabeças de um animal que pode ser abatido com rendimento de carcaça médio de 50%.
Mas era pouco ainda para as exigências de uma terra quente, pobre em pastagens por causa de longas secas e com ameaças de parasitas. Os Nelthropp ainda não estavam satisfeitos e, apesar de a família possuir na fazenda Granard States o maior rebanho de N’Dama da ilha, com 250 cabeças, faltava um componente que agregasse o leite às matrizes. Albert, o filho mais velho de Henry Nelthropp, era o responsável pelo manejo e “fechou” a seleção para buscar gerações cada vez mais produtivas. Mas foi uma viagem de dois dias de navio do irmão mais novo, Bromley, que resolveu a questão.
Em 1918, Bromley Nelthropp rumou para Trinidad, pequena ilha ao sul do Atlântico que forma Trinidad e Tobago, nas Antilhas Menores. Procurava alternativas para o seu rebanho africano e resistente. Encontrou e comprou um touro de uma tonelada batizado em Trinidad de Captain Kidd, que ele logo renomeou para Douglas, segundo relatos da negociação – não confirmados, porque uma anotação escrita a mão por um dos Nelthropp nomeava o touro de Sultan.
Duas versões dessa compra, uma de 1953 e outra de 1972, apontam para uma barganha de 2 mil dólares o custo desse reprodutor adquirido junto ao Ministério da Agricultura de Trinidad, que tinha ligação com a Estação Britânica de Pesquisas.
O fato é que Sultan, ou Douglas, segundo a mesma anotação, não parecia ser uma raça taurina pura. Apresentava ainda batoques que Bromley desconsiderou ao levar o seu novo reprodutor para Saint Croix a fim de cruzá-lo com as vacas N’Dama aspadas, para tentar cumprir o objetivo de mochar o seu rebanho, para facilitar o manejo e evitar prejuízos – como ferimentos que as vacas africanas se causavam com os chifres ou aos próprios responsáveis pelo manejo. Começava ali a se desenvolver um animal mais completo, com bezerros e bezerras recriando muito resistentes ao calor e à umidade, às doenças, e ainda desmamando mais pesados, dóceis.
O fato é que a procura continuou e experiências foram feitas com Brahman e até o Devon, mas com o rebanho “fechado” para apuração dos resultados, pelo menos até o início da década de 1940, com uma dificuldade muito grande de manter o rebanho crescendo e tentando diminuir o grau de consanguinidade.
Em 1942, o mesmo Bromley adquiriu, na vizinha ilha de Saint Thomas, numa fazenda chamada State Tutu, o primeiro touro Red Poll puro, chamado Doctor, que passou a cobrir as fêmeas N’Dama para fornecer produtos que depois foram chamados de Senepol _ “Sene”, da origem africana senegalesa, e “pol”, de Red Poll.
Dali em diante, foram nascendo gerações cada vez mais completas e já sustentáveis, embora este termo não fizesse parte do vocabulário dos produtores locais. As crias desse cruzamento foram apurando as gerações seguintes com uma bezerrada altamente resistente às doenças, com pelo zero, mochas, vermelhas e dóceis, com alta capacidade de ganhar peso e produzindo uma carne que já começava a impressionar por sua maciez, suculência e sabor. É tudo o que qualquer ser humano deseja e era o que os Nelthropp tinham para oferecer. O interesse cada vez maior de pecuaristas vizinhos pelo gado produzido na casa dos Nelthropp os levou a um grande sucesso comercial até 1949 e a uma popularização dessa nova raça por eles desenvolvida.
Na virada da década, a família Nelthropp trocou de ramo na pecuária, passando da carne para o leite. O rebanho “inventado” na ilha passou para as mãos do empresário Ward Canaday, então presidente da Willy’s Jeep, que fez uma fortuna estimada de US$ 760 milhões fornecendo seus utilitários para as Forças Armadas dos Estados Unidos, na Segunda Guerra Mundial.
Canaday conservou Frits Lawaetz como gerente da sua nova Annaly Farms. Ele registrou todos os dados genéticos daquele novo rebanho, com o que, em 1954, os Estados Unidos oficializaram Senepol como nome da raça criada e desenvolvida na Ilha de Saint Croix.
O OUTRO LADO DA ILHA
Ward Canaday levou a Annaly Farm para continuar sua história com o Senepol para o lado oeste, batizado na ilha com suas iniciais. O lado WC, sigla que ainda existe em algumas linhagens da raça pelo mundo, sempre foi privilegiado em termos de condições naturais. Mais chuvoso, desenvolveu historicamente melhores pastagens, mas nunca foi menos exigente com a pecuária, onde se obtém animais de bom escore, fertilidade e habilidade materna espantosas.
A precocidade e a capacidade de maturidade sexual e de acabamento, tanto dos machos quanto das fêmeas, sempre foram muito nítidas, depois do surgimento do Senepol e da seleção natural a que foi se submetendo o gado criado pelos Nelthropp. No Extremo Leste da ilha, contudo, foi onde tudo começou, com a chegada dos primeiros animais N’Dama pelas mãos de George Elliot.
As aptidões rurais de Saint Croix eram comuns em todas as suas regiões. Na parte oriental viviam famílias que cultivavam com sucesso algodão, algum gado que também já se desenvolvia ali sem muita qualidade e até o indigueiro, planta que exige regiões quentes e de onde se extrai o anil. Mais seco, este lado da ilha casou perfeitamente com o N’Dama, que dividia os espaços ali com lavouras de algodão semeadas pelos escravos.
No começo da década de 1950, uma propriedade, a Castle Nugent, que já havia pertencido a muitas famílias, foi comprada pelos Wall, que dentre seus membros contava com Caroline, mais tarde casada com o italiano Mario Gasperi. Howard Wall, pai de Caroline, introduziu em 1957 os primeiros exemplares de Senepol na propriedade, pensando no sucesso de que ele já tinha notícia pelas mãos dos Nelthropp e, depois, com Ward Canaday.
Em 1963, Mario Gasperi, que já havia concluído seus estudos nos Estados Unidos, mudou-se com Caroline para Saint Croix e juntos passaram a selecionar o Senepol CN (iniciais de Castle Nugent) com a precisão que aquele lado da ilha exigia por causa de suas condições naturais.
O relato é da própria Caroline Gasperi, que perdeu o marido em maio de 1989.
Em carta, ela documentou para órgãos de turismo na Ilha de Saint Croix a história da fazenda, que em 2006 foi doada para a Universidade das Ilhas Virgens – antigo Virgin Islands College – para seguir com as pesquisas sobre a raça que foi ali se firmando com ótima conformação, incrível resistência a parasitas e doenças e ainda com ótimo desenvolvimento de todas as características fenotípicas e genotípicas que a raça vem espalhando desde então pelo mundo afora. Foram famílias multiplicadas com essa junção de características que tornaram o Senepol completo, principalmente no Brasil, onde quase a totalidade dos criatórios desenvolve sua seleção a partir de uma genética originária das siglas WC e CN. Mas antes disso foi preciso muita pesquisa para certificar a “invenção” dos Nelthropp.
A CIÊNCIA
Desde o reconhecimento oficial de raça pelos Estados Unidos, todo o desenvolvimento do Senepol vinha acontecendo nos campos da ilha através dos resultados que satisfaziam criadores e consumidores de uma carne abundante e de alto valor nutricional, além de macia e saborosa. Cada avanço nos números comerciais levantava a necessidade de estudar de onde vinha tanta capacidade produtiva.
Foi quando entraram em cena cientistas, pesquisadores e entidades interessadas em entender o Senepol e dar a ele o destino além-fronteira que ele já merecia.
Mas a primeira fronteira que o Senepol rasgou foi a do conhecimento, já que no então Virgin Islands College (VIC) – que somente em 1986 passou a se chamar University of Virgin Islands – aconteceram os primeiros estudos a respeito da estrutura dos animais criados soltos, na maioria dos casos, sem cercas, espalhados pelo território de Saint Croix.
Os primeiros resultados empolgaram tanto que, em 1972, o doutor Harold H. Clum (1894-1987) pediu ao Congresso dos Estados Unidos e obteve do USDA (United States Department of Agriculture) – o Ministério da Agropecuária americano – apoio para estudar a raça na ilha, sob a supervisão da Universidade da Flórida. Um ano depois, John E. Rouse, um apaixonado estudioso de pecuária que percorreu 72 países pesquisando raças bovinas mesmo antes de se aposentar de uma refinaria americana, dedicou ao Senepol um dos volumes – o terceiro, de quatro – de sua extensa enciclopédia com a obra World Cattle III – Cattle of America.
Dois anos depois, o Dr. Darshan S. Padda, responsável pela Estação Experimental de Agricultura da VIC, concordou com Oscar Henry, um dos quatro primeiros criadores de Senepol de Saint Croix, em tornar a raça prioridade na ilha e iniciar a composição de um regulamento para exportação de animais puros. Para isso, foi necessário criar um Herd Book, um livro de registros rastreando os animais existentes na ilha baseado nos dados inseridos na recém-criada Virgin Islands BCIA (Beef Cattle Improvement Association), uma espécie de sumário com dados de avaliações do melhoramento genético observado na raça.
A convite do Dr. Padda e do diretor da VIC, Oscar Henry, um grupo de quatro pesquisadores americanos veio da Flórida para conhecer o Senepol e, por recomendação deles, elaborar um documento que guiaria aqueles próximos passos, que seriam, inicialmente, quatro: desenvolver um catálogo dos animais puros da raça; estabelecer os padrões raciais para catalogar os animais; criar um programa de testes comparativos da raça pura com outras criadas na ilha; e, por fim, elaborar o regulamento para quarentenar os animais, a fim de enviá-los ao continente.
Com essa organização, em 1977, os primeiros 22 animais vivos saíram de Saint Croix para cruzar o mar em direção ao continente americano, para serem estudados mais de perto pelos pesquisadores de diversas universidades nos principais estados produtivos dos Estados Unidos. Foi quando começou a despertar nos produtores rurais americanos o interesse em experimentar essa nova espécie bovina que já tinha muito respeito pelos estudiosos dos resultados que ele oferecia.
Apesar disso e por não ter ainda rebanho suficiente para ter uma “casa própria”, o Senepol foi “adotado” nos EUA por associações de outras raças, exatamente como aconteceu no Brasil, na África do Sul ou em outros países onde ele chegou e também cresceu rapidamente. Para o embarque aos Estados Unidos, os animais selecionados já tinham registro na Virgin Islands Senepol Association (VISA), que havia sido fundada em 1977.
Depois de todo o reconhecimento por parte do continente e da participação do Senepol pela primeira vez em uma exposição agropecuária, a North American Livestock Expo, em Louisville, Kentucky, em 1984, a USDA concordou em nacionalizar a associação e criou a American Internacional Senepol Association (AISA), que em 1990 se tornou Senepol Cattle Breeders Association (SCBA), que desde então coordena o avanço da raça pelo mundo e foi a primeira “casa” dos registros para os animais brasileiros.
O Senepol se espalhou por muitos países e encontrou um grande campo para aumentar em volume e em qualidade exatamente no Brasil. Apesar de os americanos apreciarem demais a criação do Senepol, sua carne e sua eficiência produtiva, no berço da raça ela está minguando por uma série de fatores.
Vão desde a extensão da ilha mais bem-aproveitada para o turismo, quando os devastadores furacões permitem, até o risco que uma criação bovina solta pelas rodovias locais representa. Um turista que acaba uma curva no seu deslocamento de carro pode se deparar com uma fêmea Senepol comum amamentando seu bezerro, possivelmente uma doadora em potencial em qualquer criatório selecionador de genética apurada da raça, mas ali, solta. As leis em Saint Croix foram ficando rígidas com relação ao seguro que o criador precisa fazer para cada animal – estima-se em mil dólares por cabeça – a fim de cobrir eventuais danos dessa natureza. Muitos estão deixando de criar e optando por migrar para outras atividades produtivas ou para o próprio turismo, como o caso da Castle Nugent, que virou uma fonte de turismo ecológico-cultural, já que uma parte da propriedade foi doada à universidade local para visitação e campo de pesquisas.
Por isso, a carne consumida preferencialmente na Ilha de Saint Croix não é mais dos animais Senepol nascidos ali – ela chega de outros países, muito embora o turista que conhece as aptidões da ilha exija algumas vezes a autêntica carne do gado criado ali e que ganhou fama pelo mundo.
O mesmo acontece nos Estados Unidos, onde embora algumas propriedades conservem rebanho de Senepol puro como banco genético, a fim de renovar linhagens pelo mundo, o clima na maior parte do país desestimula cada vez mais o selecionador americano para a raça.
Depois de todas as conclusões tiradas no primeiro Simpósio Internacional de Pesquisas do Senepol que ocorreu em 30 de setembro de 1987 e teve todos os relatórios dos cientistas, bem como a transcrição do debate que aconteceu no final do encontro, relatados no livro Proceedings, reeditado em 1999 pela University of Virgin Islands, em Saint Croix, através do pesquisador Stephan Wildeus, já naquela ocasião, com a participação dos principais envolvidos na construção da raça e seu desenvolvimento na ilha, ficou claro que o Senepol era uma raça que caberia excepcionalmente bem em países tropicais.
Entre os participantes da mesa- redonda, alguns que fizeram e ainda fazem a história da raça, como Hans Lawaetz, Caroline Gasperi, Tim Olson, Dr. Chambers, entre outros, pareciam profetizar o que viria a ser o Senepol no mundo.
Para atender uma demanda que já se anunciava evidente, os testes prosseguiram em vários centros de pesquisa pelos Estados Unidos. Era a porta principal do conhecimento para muitos técnicos brasileiros que visitavam o país em busca de especialização. E foi assim que o destino do Senepol se encontrou com a busca por eficiência em pecuária de um país que hoje detém o maior e melhor rebanho de Senepol do mundo: o Brasil.